Ennio Candotti: há muito espaço para o desenvolvimento da divulgação científica


Foto (Rede Globo): Felipe Fittipaldi

Italiano de nascimento, mas brasileiro de coração e carteirinha. Físico por formação, mas um grande apreciador das ciências sociais e humanas. Essas relações e passagens por campos diversos marcam a vida de um dos principais nomes da divulgação científica e tecnológica (DCT) nacional.

Ennio Candotti completou 71 anos nesta terça-feira de Carnaval, feriado às vésperas do qual ele nasceu em Roma, em plena Segunda Guerra Mundial. Hoje, ele tem uma carreira consolidada, mas para isso foram necessárias décadas de militância em prol da ciência, permitindo-o desfrutar de muitas experiências país e mundo afora.

Atualmente, Candotti ocupa o cargo de diretor-geral do Museu da Amazônia, já presidiu por quatro mandatos a Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (da qual é presidente de honra), ajudou a fundar alguns dos principais projetos de divulgação do país, como a revista Ciência Hoje, CH das Crianças, SBPC Jovem, a EXPOTec, além de ter incentivado a criação das fundações estaduais de amparo à pesquisa. Tamanho esforço rendeu a ele o prêmio Kalinga de Popularização da Ciência, concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 1999.

Confira a entrevista na íntegra:

Como foi a sua chegada ao Brasil?
Ennio Candotti: Eu desembarquei no dia 28 de dezembro de 1951, no navio Sises. A embarcação, com 17 mil toneladas, saiu de Gênova dezoito dias antes e era a última de emigrantes partindo da cidade.

A viagem foi conturbada, pois quase naufragamos por duas vezes. Uma delas, ainda nas proximidades do litoral espanhol e a outra já nos arredores de São Paulo, onde quebrou o eixo de transmissão que movia a hélice do navio. Algumas embarcações passavam por perto para oferecer ajuda, mas foi possível a troca da peça. Ainda bem que na ocasião as águas estavam mais calmas e eu pude celebrar o meu aniversário de dez anos no Brasil.

Durante o percurso, eu carreguei um livro que o meu avô presenteou antes da partida - “Este Mundo Grande e Terrível”, da Ginestra Amaldi, grande divulgadora de ciência. A obra aborda temas muito interessantes e atuais, como as estrelas, a paleontologia, a geologia e as partículas elementares, como a então recente descoberta do meson pi pelos físicos César Lattes e Giuseppe Occhialini. Lembro que eu guardava o livro com todo o carinho em baixo do travesseiro do beliche no navio. O tenho até hoje!

E como o senhor foi despertado pela DCT?
Ennio Candotti: O fim dos anos 1960 marcou a historia das relações entre ciência e sociedade e revolucionou as relações políticas entre países centrais e periféricos. Os movimentos de libertação se multiplicaram e prepararam os anos de lutas pelo fim das ditaduras e da dominação colonial, como na Argélia, no Vietnã (com a derrota dos Estados Unidos), em Portugal, Moçambique, Angola, além dos países sul-americanos, como a Argentina, o Chile e o próprio Brasil (este, no início dos anos 1980).

Após a minha graduação, na Universidade de São Paulo (USP), em 1964, fui trabalhar em institutos europeus. Entre 1965 e 1974, passei por Pisa, Napoles e Milão, na Itália, além de Muenchen, na Alemanha. De lá, ao saber das perseguições, prisões e assassinatos de amigos e colegas no Brasil, fiquei revoltado. 

No meu retorno, cheguei ao Rio de Janeiro decidido a participar do movimento pela redemocratização do país. Participei da criação do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e das mobilizações contra o acordo nuclear Brasil-Alemanha (1975) que, além da energia elétrica, buscava construir a bomba atômica da ditadura.

O nosso posicionamento era de resistência ao regime e também à transferência de tecnologia para enriquecer o urânio, que era uma farsa. A técnica oferecida pelos alemães do jet nozzle (enriquecimento de urânio por jato centrifugado) não funcionava. Por isso, precisávamos denunciar a trapaça que culminaria com desperdícios de dinheiro e inteligência. Defendíamos, sim, a construção de reatores com moderadores de água pesada, genuinamente projetados no Brasil.

A minha postura política contribuiu para eu me aproximar da SBPC, da qual em 1977 fui eleito secretario regional. Junto com Roberto Lent, Otavio Velho, Darci de Almeida, Alberto Passos Guimarães e outros cientistas, participei de um projeto da Sociedade que em 1982 ganharia as bancas de jornal: a revista Ciência Hoje. Na mesma época, lançamos também o programa Ciência às Seis e Meia (uma parceria com o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), além da realização de conferências de divulgação no Teatro Glauce Rocha, no Rio.

Foto (Rede Globo): Felipe Fittipaldi
"Precisamos de dez vezes mais divulgadores- cientistas, jornalistas e um numero maior de canais impressos, digitais e eletrônicos de divulgação, para que o público seja composto por pelo menos 100 milhões pessoas"

A DCT e a própria ciência estão menos politizadas hoje em dia, com um cenário nacional mais estável?
Ennio Candotti: Não diria menos politizadas, pois a política conservadora também é política. Percebo que há mais uma obediência ao projeto de consolidação e defesa dos espaços políticos conquistados, e menos a construção de uma nação mais justa e igualitária. Procura-se um reconhecimento internacional e avanços na classificação da produtividade crescente em trabalhos publicados, modesta em relevância e citações.

A questão da expansão qualificada e descentralização do sistema universitário público não ocupa o lugar merecido, para uma nação em construção e ainda muito excludente na oferta de instrução superior. A política de financiamento da infraestrutura e pesquisa é dominada pelos grandes centros que exigem padrões de qualidade que eles mesmos, quando surgiram, não satisfariam.

O quadro internacional e nacional indica que um número muito grande de novos atores (na China, Índia, Brasil e África do Sul, por exemplo) passou a fazer parte do universo de cidadãos que buscam a educação – o que exige uma revisão das prioridades e políticas de C&T.

Através dos planos Brasil Sem Miséria, do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Brasil Maior, o governo sinaliza novas diretrizes de desenvolvimento, mas a comunidade cientifica não parece entender essas propostas, permanece nas trincheiras, com valores de vinte anos atrás.

A questão da propriedade intelectual e industrial cresce na academia em valor e atenção, o que pode inibir e paralisar a pesquisa de livre divulgação e a colaboração internacional. O caráter público da pesquisa é a única garantia que a sociedade tem para, indiretamente, monitorar o desenvolvimento do setor e suas dimensões éticas. Como saber se os dados e informações divulgados são decentes e confiáveis, se eles não podem circular livremente?

Nesse sentido, creio que a própria ciência, alimentada pela cooperação internacional, corre sério risco de esterilização e manipulação por interesses proprietários e de mercado.

Quais as diferenças entre a realidade da DCT de hoje e a dos anos 1980, quando começaram determinantes iniciativas para o desenvolvimento do campo?
Ennio Candotti: Não vejo grandes alterações, além de uma revolução nos instrumentos disponíveis, como a internet e a digitalização do preparo das matrizes para impressão. Atualmente, há uma vasta oferta de equipamentos baratos que permitem realizar tarefas fixadoras de conceitos básicos, como por exemplo: força, velocidade e aceleração; temperatura, luz, difração, corrente elétrica e campo magnético. Dispomos, também, de velozes maquinas fotográficas, lasers, fotômetros e outros recursos.

Observo, porém, uma lacuna, que é a produção de grandes programas de divulgação em TV, a exemplo da BBC, Dicovery Channel , NGO, entre outros. Já os museus cresceram em número, mas são poucos, pois atendem a um décimo da população que deveriam alcançar. Na Índia, por exemplo, milhões de pessoas frequentam diariamente este espaço de exposições e apresentações.

Devido a essa demanda, precisamos de dez vezes mais divulgadores-  cientistas, jornalistas e um numero maior de canais impressos, digitais e eletrônicos de divulgação, para que o público seja composto por pelo menos 100 milhões pessoas. 

Quais são as grandes prioridades do campo?
Ennio Candotti: Nós alcançamos vinte milhões de brasileiros, mas, como disse, o público deveria ser quatro vezes maior! A C&T precisa ser parte da solução, não dos problemas sociais e da construção de uma nação mais justa.  O conceito de ciência deve incorporar, também, a antropologia, a arqueologia, a história, a linguística e a sociologia, não apenas disciplinas como a física e a química, por exemplo.

Portanto, incluir os campos sociais e das humanidades nas discussões e na agenda do sistema é um passo fundamental. A inovação só pode ser pensada em termos da dimensão humana, econômica e social da ciência, da mesma forma que a sustentabilidade do desenvolvimento não pode, apenas, atentar às licenças e outros aspectos ambientais.

A principal prioridade é a conquista da competitividade internacional e o equilíbrio nacional. O desenvolvimento científico dos diferentes estados é muito desigual, o que explica o surgimento de novos talentos em poucas e repetidas localidades. Somente cinco milhões de jovens podem chegar à universidade, dos quais 500 mil ingressam nas boas instituições.

Já a divulgação encontra um grande desafio que é informar não apenas o conhecido (propaganda dos ‘progressos’), o que fazemos nos laboratórios, mas também discutir os limites do conhecimento, os impactos sociais, as dúvidas, éticas e políticas que movimentam esse cenário.

O senhor teve participação direta na criação de importantes projetos, programas e ações diversas de DCT. Há demanda para mais iniciativas de tamanho porte?
Ennio Candotti: Certamente. Alguns exemplos são a criação de museus e centros de ciências, planetários, jardins botânicos, parques zoobotânicos e museus vivos (como o Museu de Manaus). Outra iniciativa seria lançar jornais e revistas populares de divulgação (e circulação nas escolas), além de tabloides no modelo do periódico Metro, com edição descentralizada. As feiras, olimpíadas e exposições podem ser multiplicadas por dez, em um período de cinco anos. Tais propostas poderiam ser eficazmente estimuladas através das FAPs.

Melhor, ainda, seria criar uma agencia nacional exclusivamente dedicada à popularização da ciência, uma organização social como a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), permitindo a parceria público-privada, com ramificações estaduais. Essa estrutura já acontece na Alemanha, Espanha, Coréia do Sul, Índia, Portugal, Inglaterra, China, Japão e outros países.

Como está se desenvolvendo a relação entre os cientistas e os profissionais de divulgação?
Ennio Candotti: Os pesquisadores perderam o medo de escrever e de falar para os jornalistas. É comum ouvir que a imprensa distorce o que o pesquisador diz, mas por experiência, tendo a acreditar que o jornalista distorce as palavras do cientista quando este não sabe explicar com clareza o que está fazendo, ou responde de maneira muito confusa às perguntas, sem exemplos e ilustrações. 

Um grande físico do século XX, Ernest Rutherford dizia: quem não sabe explicar para uma pessoa simples o que está fazendo em ciência é porque não entendeu o que esta fazendo.  Saber resumir, apresentar o essencial é arte sutil que exige anos de treinamento, experiência, tentativas e erros.

Enquanto aparecerem painéis com textos extensos e tediosos, que não conseguem se comunicar através de imagens e frases breves, ainda haverá trabalho por fazer na comunicação em ciência e em arte. 

De que maneira as novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) afetam a dinâmica da interação entre o cientista e o divulgador?
Ennio Candotti: Sem dúvida, facilitaram a comunicação, pois tornaram muito mais rápido o processo de registro, edição e transmissão da informação. A modelagem e os bancos de fotografias permitem associar imagens e dar asas à fantasia, quando se quer explicar alguma coisa.  Mas, como sempre, não substituem a imaginação do cientista ou do jornalista. Não há tecnologia que crie metáforas, mesmo pensando que o próprio modelo é uma metáfora.

Foto: site ABC

"O sucesso da divulgação está na capacidade de ver os objetos de múltiplos pontos de vista e registrar esta multiplicidade"






Como o senhor avalia o processo de transposição da linguagem científica para a linguagem acessível ao público leigo?
Ennio Candotti: É um processo de aprendizagem do cientista, do comunicador, do cineasta... de todos. São anos de tentativas que permitem aprimorar a arte de encontrar metáforas e imagens para sugerir ao leitor o caminho do entendimento. Não se nasce poeta, dramaturgo ou pesquisador. É preciso dedicar certo tempo e exercícios para aperfeiçoar o traço. Michelangelo disse ter jogado fora mais de 1000 desenhos!

Quais as habilidades são necessárias para o competente exercício da DCT?
Ennio Candotti: Imaginação e senso critico, saber subtrair os exageros das informações recebidas e não ter medo de sublinhar os contrastes. Os jornalistas precisam desconfiar do que afirma a ciência.  O razoável é dizer: em tais e tais condições; até o momento; pode-se afirmar que as coisas têm essa correlação, se comportam dessa maneira; etc. Certeza que temos é apenas a de que a Terra gira ao redor do Sol, e assim mesmo se for observada do astro.

O que o senhor recomendaria ao jovem cientista em relação à atuação na DCT? E ao divulgador?
Ennio Candotti: É importante dominar muito bem uma arte, um campo do saber, seja a fotografia, biologia, física, arqueologia ou antropologia, por exemplo, e aprender com os clássicos da literatura, da arte e da divulgação, tais como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Stephen Jay Gould, Ovidio e Italo Calvino. Deve-se preservar a curiosidade de quando se é criança, apaixonar-se pelo que se faz.... ser monomaníacos na paixão e multimaníacos na busca de pontos de vista, para descrever os objetos de divulgação. O sucesso da divulgação está na capacidade de ver os objetos de múltiplos ângulos e registrar esta multiplicidade. 

O leigo, em geral, tem perguntas que o cientista não está preparado a responder, uma vez que a ciência se faz por recortes e o observador curioso pergunta sobre o todo. Devemos nos preparar para recompor o conjunto quando se conhecem os recortes. 

O que o motiva a divulgar?
Ennio Candotti: Os monstros são filhos do segredo.... que precisa ser combatido. Se desejamos fazer ciência (criar institutos, laboratórios, universidades, museus, jardins botânicos, formar jovens, resolver grandes desafios sociais na saúde, nas comunicações, no transporte, na agricultura), é preciso que os pesquisadores façam política e expliquem o que sabem para a sociedade. No Brasil, fazer política é mais do que uma opção, é uma necessidade do cientista.

Na Europa, nos EUA, na Índia, na China e no Japão, a ciência é uma das prioridades governamentais há séculos. Galileus, Newtons, Faradays, Pasteurs, por exemplo, já demonstraram que as nações se constroem cimentando o conhecimento. Divulgar ciência é parte deste projeto, mas no nosso país, isso ainda deve ser demonstrado.

Comentários

  1. adorei a entrevista! parabéns!

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  2. Muito sábias as colocações do professor Ennio Candotti. Reler e fefletir sobre elas talvez seja a melhor maneira de parabenizar este grande mestre e é isso que faço nesse instante...
    Geraldo Mendes dos Santos

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  3. Ótimo! Falou e disse! De forma simples, coerente e compreensível. Arte de poucos, mas arte dos grandes cientistas que não se escondem nas palavras rebuscadas da cientificidade mas se mostram com clareza e objetividade. Parabéns!

    Para nós pelo privilégio de poder ler esta entrevista.

    Para o PROFESSOR Ennio Candotti pelo que representa e apresenta na ciência e da ciência fazendo acontecer o saber.

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